MINERAÇÃO
Por Fernanda Perdigão
Rompeu! Essa palavra remete ao dia em que, mais uma vez, o Estado de Minas Gerais foi palco de um rompimento de mais uma barragem da mineração. Em 25 de janeiro de 2019, no município da região metropolitana de Belo Horizonte, a cidade de Brumadinho seria o cenário de mais um crime socioambiental de magnitudes incalculáveis. Cerca de 12, 7 m³ de lama de rejeito derramados, 272 vidas ceifadas de forma imediata sendo duas vidas dentro do ventre de suas mães, e incalculáveis danos ao meio ambiente, à vida das pessoas à existência humana, um desastre-crime contra a humanidade.
Neste ano de 2023, marcam os quatro anos deste desastre, e ao dialogarmos com as pessoas atingidas nas comunidades dos municípios afetados, ainda hoje, percebe-se a ausência de direitos, a ausência de justiça.
Recordemos da obra de Rui Barbosa, “Oração aos Moços”, escrito na década de 1920, sendo destinada aos formandos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, mas, também precisamos recordar, da obra musical que, cansado de visitas e especulações sobre seu estado de saúde, Cazuza escreveu “Blues da Piedade”, que podemos entender como uma crítica a esse estado de piedade que não se sabe ao certo o que realmente é.
Como Rui Barbosa descreveu em sua obra, as pessoas atingidas por toda a bacia hidrográfica do rio Paraopeba, sentem-se desanimados ao “ver triunfar as nulidades, em prosperar os maus”, que podemos dividir esse sentimento unificado em partes distribuídas nos 4 anos deste crime continuado.
A começar, pelo ano inicial, 2019, em que o caos tomou conta de cada parte dos municípios, entre o sofrimento da descoberta de mais um nome desaparecido em meio a lama densa e pesada, e a avalanche de entidades, ONGs, instituições governamentais e toda a mídia buscando informações, seguido do desconhecimento das pessoas atingidas do que aquele caos geraria a elas no curto, médio e longo prazo.
Não bastando todo o sofrimento das perdas de vidas humanas, o luto enraizado nas ruas e olhares, no primeiro ano após o rompimento, 2020, o agravamento da condição de saúde mental das pessoas com a chegada da pandemia do Covid 19, o isolamento esvaziou os espaços de diálogo que existiam junto a entidades e instituições de justiça, não permitia o abraço fraterno diante a notícia de mais uma vítima encontrada em meio a lama de rejeitos, os espaços de acolhimento e encontro ficaram num silêncio assustador, e a empresa ré, Vale S.A seguiu suas atividades sem interrupção, suas manobras perversas de desarticular as pessoas atingidas, e foi dominando os territórios com máquinas e carros contendo seus sinalizadores refletivos.
Mais mortes, perdas irreparáveis seguiu o início do segundo ano do rompimento, 2021, e mais uma violência à essas pessoas já dilaceradas pelas ações dos “maus”, desta vez, a violenta forma de negociação escolhida pelo Estado de Minas Gerais, onde a palavra sigilo foi orquestrada para que o Acordo Judicial fosse firmado sem o conhecimento, sem a participação das pessoas atingidas, que seguiam lutando pelos direitos. Mas, em fevereiro de 2021, num abuso de poder em representar os interesses sociais, o Estado assina o que passou a ser mais um elemento de violação de direitos e deturpação do que é justiça.
O cuidado que se deve ter ao analisar cada caso concreto, levando em consideração as peculiaridades de cada um, nunca abandonando o princípio da individualização e da boa-fé, buscando o melhor para todos os indivíduos, que Rui Barbosa descreveu em sua obra, não foram sequer ventilados pelos chamados “Compromitentes do Acordo” que são: Ministérios Públicos Federal e Estadual, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e Governo de Minas através do Comitê Gestor Pró Brumadinho.
Caminhando para o terceiro ano, o mês de janeiro marca terrivelmente as pessoas já atingidas de toda a bacia do Rio Paraopeba, com a enchente de lama de rejeito de 2022, levando mais uma vez às comunidades as consequências trágicas da ausência de ações de reparação, poços artesianos foram contaminados, plantações destruídas, imóveis destruídos, pessoas desabrigadas, e como consequência ao contato com a água contaminada os agravos à saúde como reações na pele, casos de diarréia, problemas respiratórios além do extremo sofrimento que impõe agravos à saúde mental já afetada desde o rompimento.
Fonte: pessoas atingidas da bacia do Paraopeba
Em resposta aos novos danos da enchente e ao agravamento dos danos já existentes, as instituições de justiça – Ministérios Públicos Federal e Estadual e Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais – firmam um Termo de Compromisso com a empresa ré Vale S.A na busca de garantir a retirada dos rejeitos novamente derramados em toda a calha do rio Paraopeba, mas, assim como o Acordo Judicial já firmado, não cumpriu com seu objetivo, mantendo até hoje as pilhas de rejeitos nas comunidades ribeirinhas ao longo de toda a bacia e que a cada período chuvoso, sofrem com as enchentes mais severas devido ao assoreamento do rio.
Em meio a todo esse processo de quatro anos, muitos complicadores e deturpações de direitos foram sentidos por cada pessoa atingida, a manutenção da opressão à minorias, através da classe retentora do poder político, quase dizimou a luta popular, as pessoas que alegraram com a sanção da Política Estadual dos Atingidos por Barragens – PEAB, que garante dentre outros, o direito à Assessorias Técnicas Independentes, hoje percebem esse direito perdido entre o que essas entidades deveriam ser e o que estão sendo.
O direito tão propagado de Reparação Integral dos Danos, sendo mudado conforme os interesses dos representantes públicos em nível municipal e estadual, princípios como da centralidade do sofrimento das vítimas, sendo negligenciados, direito à participação social e o direito à informação não sendo cumpridos, o direito à vida sendo violado.
Até este momento a realidade é, pessoas adoecidas, sem água para consumo, sem atendimento médico, sem acompanhamento psicológico, sem segurança alimentar, sem perspectiva de futuro. Mas, com uma “indústria da reparação” à todo vapor, onde empresas recebem contratos milionários para a execução das obras propostas pelo Estado a partir do Acordo Judicial, entidades que coordenam projetos elaborados pela própria empresa causadora dos danos, e entidades que deveriam prestar assessoria técnica independente e que foram transformadas em “mobilizadoras sociais”.
A insatisfação da forma de aplicação do Direito à Assessoria Técnica, passa pelas limitações impostas pelas Instituições de Justiça, pela interferência de movimentos sociais que por vezes tomam os espaços de fala e construção que deveriam ser das pessoas atingidas, até a incapacidade das próprias instituições que deveriam prestar a assessoria técnica em meio aos milhões investidos e ocupando os espaços que deveria traduzir os anseios das pessoas atingidas.
Não, a crítica anterior não se trata de mera percepção, é uma realidade que precisa ser vencida para reduzir o sofrimento de centenas de pessoas atingidas e que poucos ousam denunciar, pois, o medo de retaliação e perseguição e exclusão dos espaços de participação social assombra as pessoas atingidas que criticam a “indústria da reparação” criada.
E, fechando o marco do quarto ano do desastre-crime, 2023, como no clamor na canção de Cazuza, “ vamos pedir piedade, Senhor piedade”, diante o sofrimento incomensurável imposto às pessoas atingidas que lutam à quatro anos para sobreviver, “Pra essa gente careta e covarde” que passa por cima de princípios e valores humanos para garantir os mais diversos interesses espúrios num cenário de contínua morte, e a essas pessoas que insistem em existir “lhes dê grandeza e um pouco de coragem” para seguirem resistindo mesmo que “de tanto triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”, que como Rui Barbosa em sua obra apresenta críticas ferozes à legislação vigente no Brasil àquela época, neste marco dos quatro anos do desastre-crime, essa crítica ao Poder Judiciário Mineiro, ao Estado de Minas Gerais, às entidades que pertencem à essa Indústria da reparação, possam como nos conselhos do autor de “Oração aos Moços” servir de conselho para que escutem o clamor das pessoas atingidas que pedem piedade. Vamos pedir piedade.
Fernanda Perdigão
Humanista, Atingida pela mineração, Ativista, Ambientalista, Defensora de direitos humanos, Empreendedora Social
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